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Performances

A Caçamba da vez: uma crítica ao espetáculo imobiliário

A CAÇAMBA DA VEZ: uma crítica ao espetáculo imobiliário - ação realizada em 26 de novembro de 2011, em frente à Casa Amarela da Vila Romana.

 

            A performance A Caçamba da Vez foi idealizada durante o curso livre de história da arte [De Leonardo ao Digital] no Museu da Imagem e do Som (MIS), em 2011, do qual a artista Janice de Piero (fundadora do MOVER – Movimento de Oposição à Verticalização Abusiva) foi aluna.  No final do curso, os alunos foram convidados a desenvolver um projeto a partir de documentos pertencentes ao acervo do MIS. Após muitas semanas de pesquisa, a artista Janice de Piero encontrou um áudio em fita cassete [A Constituinte e a Ecologia (Fita 1, C – 533)] referente a uma mesa redonda ocorrida durante a constituinte em 1988 e que contou com a presença de representantes de várias instituições, tais como, Rubens  Born, coordenador do Centro de Estudos de Conservação da Natureza (CECON) e  Paulo Bastos, presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT). Esse material balizou todo o desenvolvimento do projeto A Caçamba da Vez, orientado pelo Prof. Dr. Nelson Brissac Peixoto.

            O nome Caçamba da Vez faz referência ao termo utilizado pelas comunidades de bairros “a bola da vez”, isto é, quando um bairro, geralmente residencial, é escolhido para ser ocupado brutalmente por espigões. Ao encontrar tal bairro agradável, bem estruturado, com casinhas charmosas, cultura local singular e uma comunidade de convívio harmonioso, não há dúvida, esse bairro será “a bola da vez!” − as incorporadoras apresentam aos seus compradores o bairro atraente, bonito e tranquilo, enquanto tratores e escavadeiras o exterminam.

            As demolições são colocadas dentro de caçambas, e nelas encontramos história, identidade, cultura, convívio, afetos – tudo transformado em entulho; a destruição é feroz e os impactos ambientais são avassaladores. 

            O objetivo de A Caçamba da Vez foi ser mensageira e receptora de vozes, oferecer espaço para a sociedade civil refletir e manifestar-se, externando suas opiniões e expectativas perante a situação que ela experimenta nesses bairros (frações de território da cidade), causada pela trágica atuação da especulação imobiliária.

            Em seu aspecto conteudístico, baseada em conceitos da estética relacional e nas experiências sobre o ativismo, a obra teve como objetivo dar voz aos cidadãos e cidadãs de diferentes bairros que se sentiam incomodados, inconformados e oprimidos pelas ações especulativas das grandes construtoras. Diante desse cenário de perecimento, à população resta ficar inerte, sem ação, pois a estrutura política-governamental concede às construtoras suportes e mecanismos que impedem ou anulam qualquer posicionamento contrário aos interesses destes grandes investidores. 

            A Caçamba da Vez surge, então, para dar voz a essa fala contida e oferecer à população um espaço arrazoado, no qual podem exercer a crítica e manifestar seu repúdio às imposições do mercado imobiliário. 

 

O ATO 

            A performance inicia-se com a instalação de uma caçamba em frente à Casa Amarela da Vila Romana, um bairro, como se disse anteriormente, tomado por intensa especulação imobiliária. Essa “caçamba da vez” é a “caçamba da fala”, ou seja, dentro dela não existe entulho, mas um alto-falante que reproduz a voz de Paulo Bastos (CONDEPHAAT), suas constatações e previsões durante a constituinte em 1988: 

Eu como presidente de um órgão de preservação, o CONDEPHAAT, sei o quanto é importante o Decreto-lei 25, que é de 1937, ainda hoje, para garantir a preservação do patrimônio. Um decreto proposto por Mário de Andrade, e que depois ganhou o foro da lei, que nós defendemos com unhas e dentes, e que é um dos instrumentos, e quase um dos únicos que tem hoje, como uma forma de proteção. A gente vê que se qualquer coisa falhar na legislação, essas conquistas podem ser completamente neutralizadas e se perder o pouco, porque é muito pouco, são dois ou três anos, de experiência que a gente efetivamente já está tendo, experiência importante e significativa para essa defesa.

Tem que ter claro o seguinte: a predação, a destruição do patrimônio, entendido como eu falei, como um todo, ela deriva na verdade, de uma ocupação do solo, de uma distribuição das forças produtivas do território nacional, que é de caráter desigual, e é de caráter a privilegiar efetivamente algumas camadas só, em detrimento do conjunto da população.

A gente muitas vezes diz assim: a ocupação do solo é irracional, as cidades são caóticas. Não é irracional, nem é caótica para quem detém a posse desses meios. É feito de acordo com a sua necessidade e seu interesse. Só que essa necessidade e esse interesse não se coadunam com o interesse da coletividade. Agora não é irracional para esses grupos, é racional para eles, porque a única coisa que preside esse processo é o lucro efetivamente. E a questão ambiental, a questão do patrimônio cultural, não tem importância porque o usufruir desse patrimônio não é feito aqui, é feito fora ou nos guetos, onde se acumula esses patrimônios para o uso fruto dessas camadas.  

E em relação aos governos há que se exigir deles diretrizes discutidas, expostas publicamente e, sobretudo, exigidas para que a ocupação do território, a ocupação produtiva do território, venha a se dar segundo diretrizes que consultem os interesses da maioria da população no sentido do desenvolvimento pleno, não do progresso entre aspas, que alguém já citou aqui, e que em nome dele se destruiu quase tudo, mas do desenvolvimento pleno da pessoa humana que é no sentido do bem-estar, da qualidade de vida e do usufruto dos bens culturais que é produzido pelo conjunto. 

[Transcrição ipsis litteris feita por Janice de Piero]

 

            Após a audição das sensatas (e atuais) palavras de Paulo Bastos, no evento, representantes de bairros e associações foram convidados e convidadas a manifestarem seus pensamentos utilizando-se do microfone colocado ao lado da caçamba: José Trindade Célis (Representante da Lapa de Baixo); Ricardo Fraga Oliveira (Representante da Vila Mariana); Lucila Lacreta (Executiva do Movimento Defenda São Paulo); Sergio Rezze (Membro do Defenda São Paulo e representante do Butantã); José Eduardo (Presidente da Associação Preserva São Paulo); Adriano Diogo (Deputado Estadual-SP); os membros do MOVER, Sidney de Oliveira,  Leonardo Mello e Silva, Helena Freire Weffort, Janice de Piero e Ros Mari Zenha; os moradores e moradoras da Vila Romana Julio de Pieri Maya,  Ana de Cerqueira César Corbisier,  Marco Moreira, Roseli Elaine de Pieri e Sergio Durval de Pieri.

 

A performance A Caçamba da Vez  chamou a atenção de parlamentares, gerou aproximações e articulações junto a associações e movimentos de bairro.

A partir desse momento, o MOVER passa a atuar em parceria com demais entidades da sociedade civil.

 

Desdobramentos: o MOVER atrai a atenção de professores, jornalistas, pesquisadores da academia, e veículos de comunicação como rádio CBN , TV Bandeirantes, jornal O Estado de São Paulo e revista Veja São Paulo.

Loop B - Performance como Resistência

Performance como resistência - participação do músico Loop B - 27/04/2013 

Crítica na Revista Performatus. 

PERFORMANCE COMO RESISTÊNCIA. A COABITAÇÃO NA CASA AMARELA, NA VILA ROMANA

 

Leonardo Mello e Silva[1]

 

1. O Cenário

 

O que havia aqui? Uma pergunta teima em ressurgir a cada saída na rua, pelas calçadas de um antigo bairro operário da Zona Oeste da Cidade de São Paulo. É uma pergunta saída da boca do flâneur suburbano que todo o dia enfrenta o trânsito maquínico com o corpo humano, transeunte que ganha os espaços flexíveis que os automóveis preenchem mas que não podem dobrar (o corpo pode), mudar abruptamente de direção, correr e deslizar pelos vãos dos espaços das calçadas. O transeunte não tem carro. Por isso tem maior disponibilidade de visão: tem de atravessar a rua, olhar o sinal de trânsito, atento que está a um entorno freneticamente mutante, tornando irreconhecível em tempo tão curto. A visão do flanêur capta essa mudança, que as pessoas comuns mal percebem, já que um dia é a repetição do outro e, ademais disso, não têm tempo. Como na cena baudelairiana, a disponibilidade funcional do flâneur é o segredo de sua poética. Ele é capaz de ver o desaparecimento de um mundo, coisa que, para os outros, tal como no caso do movimento de rotação da terra em torno de seu próprio eixo, é verdadeiramente imperceptível. A guerra entre automóveis e pessoas reproduz-se, no espaço urbano, na guerra entre a fixidez da memória dessas visões cotidianas e a força faústica da destruição para construir - no caso: destruição de casas (casas simples, geminadas), galpões e fábricas inteiras para dar lugar a novos empreendimentos imobiliários de duas, três garagens, espaço gourmet e seguranças vestidos de preto.

O que havia aqui? Uma pergunta cumulativa. De destroços. A cada saída à rua, uma nova destruição. Aqui havia um tintureiro, ali um camiseiro, acolá uma loja (agora se vêem, por outro lado, muitos cabeleireiros). A paisagem urbana produto da gentrificação é um fenômeno bem conhecido, comparável, detectável. Estudiosos do urbano e das cidades conhecem-na muito bem. Mas os processos interiores, produtos da subjetivação da experiência do confronto entre o conhecido e o estável, por um lado, e uma força que não se domina e que é avassaladora na sua voracidade destrutiva, cimento contra cimento, por outro lado, completamente fora do alcance da possibilidade de controle - esses processos, pois, são ainda pouco conhecidos.

A Vila Romana é um bairro da cidade de São Paulo situado na Zona Oeste e caracteriza-se por ser uma região que concentra um rico patrimônio industrial formado de galpões, casas operárias e antigos sítios fabris. Para ser mais preciso, melhor seria dizer: concentrava. A especulação imobiliária atualmente em curso em toda a cidade foi particularmente dura nessa região, destruindo boa parte dos espécimes edificados que atestam a importância histórica da cidade e do bairro para a industrialização do país, traço imamente do moderno em nossa experiência histórica. Por essa razão, a preservação desses conjuntos construídos, muitos deles bem antigos, datando dos primeiros anos do século XX, constituiu um movimento de contracorrente à subtração da memória que de outra forma jamais será restituída. É sobre a base desse movimento dos moradores que vai atuar a performance do dia 27 de abril de 2014, concebida pela artista plástica Janice Piero em parceria com o músico LoopB, chamada Coabitação na Casa Amarela. Janice tem um histórico de exibições em mostras e galerias da cidade; LoopB é um pesquisador de sons trabalhando na confluência entre a música eletrônica e a intervenção sobre objetos comuns que no entanto geram uma sonoridade incomum. Ambos acordaram sobre a necessidade de exprimir o mal-estar no pedaço.

 

2. O Pedaço: a Rua

 

A demolição é para sempre. Ruínas não podem ser repostas, a menos que sejam em uma outra forma, cujos material, contorno, linha e “espírito” já estão sob nova influência, a do arquiteto e das injunções econômicas e paisagísticas de uma outra época. O calçamento de paralelepípedo e a ignorância da garagem são impensáveis numa construção contemporânea. Exigências funcionais da vida urbana impõem novos critérios de beleza e alteram a percepção do gosto, na medida em que introduzem um contrapeso à mera fruição descompromissada e do livre curso da inspiração e do traço, ainda que canalizadas numa ordem de “estilo” de construção mais ou menos padronizada (como as casas de vila, por exemplo). O grau e o alcance da estandardização são proporcionais ao raio de incidência dessas novas e progressivas exigências, que não respeitam diferenças de classes sociais e de tempos históricos. O sentimento de “apertamento” vindo de todos os lados vigora com uma freqüência que é muitas vezes sentida mas raramente verbalizada ou racionalizada pelos espectadores desse espetáculo da destruição que é a voracidade com que as empresas de construção se apoderam dos terrenos calculadamente adquiridos num mercado de terras urbanas cada vez mais mergulhado em uma lógica financeira abismal de difícil acesso. Esses espectadores, contudo, são pessoas comuns. Moradores e proprietários de casas de bairros com características comunitárias por vezes marcantes, como é o caso dos bairros paulistanos com implantação de populações imigrantes. A Vila Romana, como o nome diz, foi formada por imigrantes italianos, muitos deles trabalhadores das fábricas que por ali se implantaram, como as do muito conhecido Conde Matarazzo. E essas pessoas comuns viveram anos nessas casas, desenvolvendo aí uma experiência de interioridade com os objetos que dela faziam parte. São esses objetos que agora parecem estar vindo para fora, para a rua, como que numa espécie de transbordamento do sentimento de “apertamento” e sufocamento que a especulação imobiliária impõe àqueles que ficaram no local, que não venderam suas casas, que não se moveram com todos os que, expulsos ou de bom grado, abandonaram a terra arrasada da promessa de qualidade de vida e convivialidade. A Casa Amarela, uma casa construída em 1921 por uma geração de italianos oriundos da região de Friuli e de Padova, não tem o conforto gentry. Mas tem o charme de uma teimosia elegante e singela, que é evidente no desenho simples e interiorano, contrastando com a modernidade kitsch dos edifícios do entorno. Ela é uma referência quase acidental para os passantes da esquina entre as ruas Camilo e Sepetiba. Muitos deles reservam alguns minutos a mais admirando-a, como se a materialidade de sua presença e o brilho de sua cor fossem o anúncio da permanência sonhada num turbilhão de mudanças sem sentido. A Casa Amarela é uma performance em si. Sua fixidez acaba sendo crítica, pois direciona seu alvo contra um movimento doidivanas, nervoso e vazio de ocupação do dinheiro sobre o espaço. Ali há tempo para uma pausa, para a cadeira na calçada e a porta aberta. De fora se vê um ateliê, que ocupa todo um lado da casa, enquanto o outro lado é o lar propriamente dito. Essa disposição foi usada exatamente dessa forma para a apresentação do dia 27 de abril, um domingo.

3. O Ato: Coabitação na Casa Amarela

 

Os convidados e pessoas comuns ficaram em torno da porta da casa, aguardando possíveis surpresas saídas do seu interior. Curiosamente, a performance não está nas obras expostas dentro, guardadas no ateliê (cuja exibição, no entanto, estava aberta ao público interessado:chama-se Lugar Mítico), mas no uso que se fez dos utensílios ordinários da cozinha, do banheiro, da copa, do quarto de dormir e da sala de estar. Objetos inesperados, acompanhantes materiais da permanência, foram eles tornados obras de contemplação sonora graças à intervenção de Loop B, o artista que é capaz de extrair som desses objetos, tendo por base uma batida eletrônica bem dosada e cativante. Concebida por Janice Piero, a dona da casa amarela, e registrada com grande maestria por Samuel Malban, companheiro de outros eventos no mesmo local, a performance sonora de Loop B, feita na calçada da casa, parecia dar vazão ao sentimento de “apertamento” que exige o descarte das coisas velhas (afinal, a Casa Amarela é uma casa velha) como uma ordem impessoal que chega até a esfera do privado, da interioridade, sem consideração para o que essas coisas velhas, afinal, significam. Sem a cumplicidade dos perdedores da memória (memória essa que tais objetos ainda conservam - a tijela da nona; a louça de porcelana do enxoval da mãe; a baixela da sala...) a performance jamais teria sido bem sucedida. Ela precisou do sorriso dos moradores dali e d’alhures que para a Casa Amarela acorreram, atraídos que foram pela convocação de uma co-habitação bem arquitetada por Janice (graças a uma versão anterior, de 2013, feita ali). O sorriso de espanto e aprovação deles era como que um alimento ou combustível para LoopB seguir em frente, já que a empreitada continha algum risco, afinal tudo pareceria muito improvisado e improvável, apesar do comprovado profissionalismo do artista. Mas eles reagiram positivamente à migração dos objetos que fazem parte do interior para o espaço do exterior, do privado para o público. Objetos do cotidiano atual também foram empregados, tais como pregadores de roupa, chinelos da filha, a gaveta da geladeira, um criado-mudo, uma manequim (a Beth, habitué de outros eventos) e até uma escada. De alguma forma, a performance artística comunicou essa expectativa difusa das pessoas do bairro de que o sufocamento e a compressão do espaço pelos condomínios altos e sem vida (um exemplo de intervenção-denúncia nesse sentido foi o ato, organizado por Janice em 2012, chamado “A Caçamba da Vez”) mereciam uma expressão de transbordamento do privado no público, na calçada. Há relatos dos tempos antigos no bairro em que os italianos e seus descendentes ouviam ópera na rua, do som saído do gramofone ou do rádio - esses relatos muitas vezes circularam nas conversas da Coabitação nº1, que por sua vez repetiram depoimentos e conversas anteriores na Casa Amarela, de maneira espontânea. Portanto, a vida pública do bairro, muito mais desenvolta no passado do que no presente, retomava um caminho já percorrido, mas deixado de lado pelo progresso. Era a lembrança de que algo (a ópera na rua, por exemplo) já tinha estado “ali” – como o sentimento de quem procura se lembrar de qual casa havia antes que os tratores a tenham reduzido a pó e entulhos. E o sentimento resultante dessa percepção de que, ao esquecer o que havia antes do novo empreendimento que toma o seu lugar, se perde algo para sempre, porque não haverá mais nada para marcar que alguma coisa como uma casa existiu naquele pedaço preciso. O mapa da memória vai ficando, com o tempo, repleto de lacunas. O que havia, afinal, aqui? - pergunta o transeunte interessando e nostálgico, atravessando as ruas da região. No mesmo diapasão, os objetos saídos da interioridade privada, como baú do tesouro da memória, vão dando algumas respostas, algumas pistas. Essas pistas são feitas de lembranças. Muito feliz o encontro da artista Janice com o músico performático e experimental LoopB, nessa “comunicação das almas”, como diria Proust. O produto do encontro dos dois foi a performance pública da calçada da Casa Amarela, que ativou as lembranças nas pessoas, e ao mesmo tempo as respostas inconscientes à pergunta O que havia aqui? Em 27 de abril, numa tarde de outono com sol tépido e claridade transparente, uma exibição de extração de sons improváveis de objetos bem prováveis de uma casa comum teve lugar na Vila Romana. Uma performance que é ao mesmo tempo uma apropriação do espaço público por intermédio – pasmem! - do sacro domínio do interior e da intimidade, daquelas coisitas que devem ser escondidas (como uma panela) – e não expostas a todos. Janice concebeu a Coabitação como um espaço aberto – a casa – em que as pessoas entrariam e contariam a sua história. Concebeu, portanto, como um ato político-performativo (e não político-institucional), em que a experiência e a palavra seriam os elementos “do contra”. Na verdade, inadvertidamente rememorou, com isso, o sentido original da política como palavra que cria o mundo humano, nas trilhas deixadas por pensadores como Hannah Arendt: “A ação que ele [o ator] inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (...) Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras.” (A Condição Humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 5ª ed., 1991).

Associando-se ao estilo ready-made de Marcel Duchamp, LoopB, por sua vez, deu uma feição sensorial à presença da casa como símbolo da permanência, usando os materiais de que dispunha. Trabalhar com o que existe parece ser o seu mote, conforme já se havia visto em apresentações anteriores (na Casa do Núcleo, com Fernando Sardo, em março de 2013, por exemplo). Na estrada desde 1992, o percurso de LoopB é vasto e rico, conforme pode ser visto em diversas ocasiões, algumas delas listadas ao fim deste texto. Mas há mais. Nele são menos as palavras e mais os sons que falam, comunicam.

Assim como LoopB não constrói os instrumentos de que se utiliza nas performances, usando o que está disponível no momento (tal como as sucatas), Janice não cede ao afã do novo, mas cria um ambiente em torno da positividade da permanência. Afinal, a Casa Amarela, nonagenária, é uma espécie de vitória sobre o tempo. Lembra aos moradores que pode haver um espaço neste mundo onde à pergunta O que havia aqui? deixa de carregar uma conotação de perda e desconforto: eles sabem que ali, naquela esquina, sempre houve uma casa. Com pessoas dentro; com nomes e história. Janice e LoopB ajudaram, cada um a sua maneira, a contar essa história.

 

Sobre Janice de Piero:

Janice atua tanto no campo das artes plásticas quanto no da performance e da educação artística para jovens. Suas obras contêm claramente a presença de uma forte identidade vinculada ao bairro, à família, aos vizinhos, à vida social afetiva. Além disso, preocupa-se em criar movimentos que implicam em ações e projetos que gerem convivências e fortaleçam afetos e relacionamentos. Até o momento foram realizadas três performances: A Caçamba da Vez: crítica ao espetáculo imobiliário; Coabitação na Casa Amarela 1 – Histórias e Memórias; Coabitação na Casa Amarela 2 – Performance de Loop B. Hoje a Casa Amarela está vinculada às ações performáticas, como um corpo agenciador que possibilita o trânsito pelas esferas afetivas, políticas e sociais. Seu trabalho como artista plástica vem seguindo o caminho da pós-produção, através da re-significação de objetos (muitos deles pessoais), e de assemblages (isso acabou por desembocar na utilização dos objetos da própria casa para uma performance). Dada a particularidade da casa, objeto freqüente de contemplação e curiosidade das pessoas que constantemente param para olhá-la e fotografá-la, veio o a idéia de mostrar como a “casa amarela” é por dentro, numa espécie de compartilhamento da intimidade. Estão no repertório da artista as seguintes exposições, todas contendo narrativas que se referem a objetos e ao relacionamento entre eles: Funarte: Objeto Instalação, 2002 (exposição individual); Galeria de Arte Casa da Xiclet: Feliz Aniversário Nelson Leirner, 2006 (coletiva); Galeria Cubo, Barcelona: Pequeños rituales domésticos, 2008 (coletiva); Galeria Cubo, Barcelona: Casa Úmida, 2009 (exposição individual); Ar[t]cevia Internacional Art Festival, Itália: Um intero museo su uma parede, 2010 (coletiva); Casa Amarela: Lugar Mítico, 2014 (exposição individual).

 

Sobre a Casa Amarela:

A casa amarela, que fica na Rua Camilo nos números 955 e 957, pertenceu ao bisavô de Janice, um dos pioneiros do bairro da Vila Romana, chegado no local ainda no final do século XIX. Abrigou, segundo conta a bisneta, muitos imigrantes chegados da Itália. Hoje ela pretende ser um local de convívio. Dentro dela, por volta de 2003 surgiu o Mover (Movimento Anti-Verticalização, que depois mudou para Movimento Contra a Verticalização Desenfreada), onde muitos desses amigos e alguns vizinhos circularam. O movimento procurava unir ação política de intervenção no espaço público simultaneamente à preservação da memória e história. Muitos eventos e trabalhos de intervenção foram feitos dentro da Casa Amarela. Dentre esses devem ser mencionados o acervo fotográfico criado a partir da coleção de fotografias trazidas pelos vizinhos e antigos moradores do bairro, assim como o acervo de áudio a partir dos depoimentos dessas mesmas pessoas, tudo feito a partir de encontros em finais de semana na Casa Amarela, de modo espontâneo e comunitário, sem qualquer auxílio institucional, seja privado ou público.

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